quarta-feira, 10 de setembro de 2008

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Acordei e vi as coisas velhas na parede morta. E não era um sonho. Apesar da
casa nova, reformada, ao abrir os olhos recordei-me daquele dia em que minha
mãe entrou na sala quase sem móveis, apenas uns 3 banquinhos, um tapete
velho e uma TV pequenina em preto e branco. Naqueles dias de amargo
inverno não havia banho quente e a TV pequenina nada mostrava. Era mais
uma semana sem dinheiro, sem luz, sem saber quando e se meu pai voltaria
para casa.

Daquele dia recordo-me de absolutamente tudo, mas a coisa ainda mais
marcante aos olhos da criança de 6 anos de idade foram os olhos da mãe.
Estávamos meu irmão e eu recortando figuras de jornais velhos, as mãos sujas
de tinta preta. Minha mãe entrou bem devagar, sem fazer barulho, como se
escondesse alguma coisa. Olhou-nos e sorriu, e embora pareça para mim
estranho, tal e qual o estranho que me tornei para ela com o passar dos anos,
nunca mais a vi sorrir aquele mesmo sorriso daquele dia frio. Naquela tarde
não havia apenas um brilho diferente, havia também calor nos olhos dela.
Disse-nos boa tarde ao entrar, e pediu para que sentássemos. Foi só então que
percebi como meu corpo tremia de frio. Minha mãe tirou seu próprio casaco e
colocou sobre meus ombros para aliviar os tremores. Pausadamente, revelou
uma caixinha que trazia escondida às costas. Eu já sabia ler um pouco, mas a
mão dela cobria parcialmente as letras impressas na embalagem, de maneira
que não me atrevi a tentar adivinhar o que era a surpresa.

Pediu então ao meu irmão, dois anos mais velho, para que fosse à cozinha
apanhar duas canecas d´água. Em pouco tempo ele retornou, as duas mãos
ocupadas por duas canecas de barro, dadas à minha mãe pela minha avó
paterna, uma compensação pela noite em que meu pai entrou em casa aos
berros e quebrou quase tudo o que encontrou pela frente. Assim como os
poucos móveis, foram destruídas também nossas lancheiras e as pequenas
garrafas térmicas que usávamos para carregar o chá de capim limão que
minha mãe fazia para nós nos dias de frio.

Dias depois desse incidente, lembro de minha mãe chorando agarrada à
máquina de costura, a única coisa que ela conseguiu salvar quando meu pai
novamente apareceu, dessa vez com dois amigos e uma kombi. Entraram,
carregaram quase tudo o que tínhamos e levaram embora.
Deixaram a máquina de costura,talvez por pena, talvez porque não encontrariam
local em que pudessem vendê-la a um bom preço.
A TV pequenina também ficou. Pensaram que ela estava estragada,
logo, não faria sentido carregar "mais aquele lixo".

"Fique com essa merda", disse, abrindo uma lata de cerveja cara. E então deu
as costas, e só voltou a aparecer muitos anos depois, como se nada houvesse
acontecido, como se as cicatrizes do passado fossem invisíveis no presente. Ele
não havia quebrado somente nossa casa, nossas coisas. Em mim ele havia
destruído permanentemente um elo de paternidade, de carinho, respeito e
confiança.

Nas reuniões de pais e mestres da escola, nunca tive pai. Apenas minha mãe
comparecia. Minha mãe era - ainda é - mãe e pai. Era ela que me arrumava
para as festinhas em casa de colegas da escola, sempre com roupas
emprestadas de algum vizinho e ajustadas às pressas na máquina de costura.
Sim, era convidado, mas nunca pude levar presentes. Saía antes que
começassem a abrir os pacotes. Sempre fiz parte dessas reuniões, sempre
estive com eles, mas jamais fui um deles.

Ao sair, sempre cedo demais, tinha sempre guardadas na meia duas fichas
telefônicas, e era com elas que eu ligava para uma vizinha que, da janela,
gritava para avisar minha mãe. Ela largava o que fosse e vinha ao meu
encontro. Fazia o mesmo com o meu irmão. Minha mãe sempre foi mãe, a
melhor mãe do mundo, sempre esteve acima de qualquer coisa. Meu pai nunca
foi ninguém, e quando foi alguma coisa, essa coisa era uma sombra que
rondava em volta, faminta. Um fantasma do passado todavia presente, apesar
de agora a ausência ser minha. Não lembro dele quando acordo, nem quando
vou dormir. Hoje, excepcionalmente, as memórias resgatadas apresentam-se
apenas para introduzir o que tenho a dizer.

Para ajudar meu irmão, fui à cozinha e, assim como ele, enchi d´água uma
caneca, mas não uma caneca de barro, e sim uma velha caneca de alumínio,
ainda amassada depois do dia do estrago. Minha mãe sempre disse que a água
fica mais fresca quando colocada em canecas de alumínio. Enfim, estávamos
nós três ali reunidos, uma expectativa solene, as últimas horas do dia e com
elas o despertar de um sonho. Minha mãe revelou a caixinha toda e, como os
olhos dela, nossos olhos brilharam e também se encheram de calor. Foram
momentos extremamente doces, um lapso de alegria numa vida amarga.
Quietos e felizes, contemplamos essas horas. Sabíamos que, como os doces da
pequena caixa, as horas doces terminariam e dariam vez à novas e mais duras
horas amargas.

Não sei ainda a razão disso, mas daquele dia em diante soube que estava
preparado para qualquer coisa que me acontecesse. Lembro da minha mãe
cozinhando arroz numa leiteira colocada sobre uma lata com álcool, à luz de
duas velas. O momento doce não terminara, como pensávamos, quando
acabaram os doces da caixa. Apesar do gosto do chocolate ser substituído pelo
sal do arroz, a única comida naquela janta, aquele doce mantinha-se em
nossos olhos, em nosso pensamento.

Quando meu pai novamente retornou, desempregado e doente, não o via mais
como pai. Como se fosse um estranho que buscava abrigo, o acolhemos. Em
verdade, eles o acolheram. Assim que pude, que tive forças para me
desprender de tudo, fui embora. Na mochila pequena, quase nada. Na cabeça,
lembrança das horas doces passadas com minha mãe e meu irmão naquele dia
frio em que brincávamos de mãos sujas recortando figuras de jornais. Ao
passar pela banca em frente à padaria, vi uma caixinha igual à que minha mãe
nos trouxe naquele dia. Eu acabara de abandonar minha própria família, por
ter comigo uma mágoa que não era compatível com os sonhos deles de ter
uma família novamente.

Quando saí, nosso "hóspede" apenas disse, sem me olhar nos olhos, que "é
possível ter uma família com apenas um casal de filhos, mas nunca sem um
pai." Antes mesmo disso, por mais de uma vez chegou a dizer que não tinha
filhos. Nunca pude suportar a dor não de não ter um pai, mas a decepção de
nunca ser aceito como filho. Agora eu tinha uma irmã que, apesar de muito
pequena, chorou na hora em que me despedi. Ela não conseguia entender a
razão de eu estar saindo para nunca mais voltar. E talvez nunca entenda...
Entreguei o dinheiro ao senhor da banca, apanhei a caixinha de cima da pilha
de várias outras caixinhas iguais e fui embora. No meio do caminho para
qualquer lugar que fosse, uma mãe com duas crianças pedia dinheiro, comida
ou qualquer coisa. Abri a mochila e entreguei para ela a caixinha, e pude ver
também felicidade nos olhos deles. Nunca mais os vi. Nunca mais fiz o mesmo
caminho novamente.

Hoje, quando acordo e dou de frente com as mesmas paredes daqueles dias,
paredes iguais, apesar de novas, lembro que agora sou eu o estranho, o que
saiu sem previsão de retorno. Lembro das canecas de barro e dos jornais, da
caixa de Amanditas, do brilho nos olhos da minha mãe. Lembro das horas
doces. Sei que não há no mundo Amanditas suficientes para trazer de volta
aquela tarde, aquelas horas. E sei também que, enquanto as horas passam,
estou cada vez mais longe, apesar da força que faço para voltar.

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