terça-feira, 14 de junho de 2011

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Em todos os lugares da vida, em todas as situações e convivências, eu fui
sempre, para todos, um intruso. Pelo menos, fui sempre um estranho. No meio
de parentes, como no de conhecidos, fui sempre sentido como alguém de fora.
Não digo que o fui, uma só vez sequer, de caso pensado. Mas fui-o sempre por
uma atitude espontânea da média dos temperamentos alheios.

Fui sempre, por toda parte e por todos, tratado com simpatia. A pouquíssimos,
creio, terá tão pouca gente erguido a voz, ou franzido a testa, ou falado alto ou
de terça. Mas a simpatia, com que sempre me trataram, foi sempre isenta de
afeição. Para os mais naturalmente íntimos fui sempre um hóspede, que, por
hóspede, é bem tratado, mas sempre com a atenção devida ao estranho, e a
falta de afeição merecida pelo intruso.

Não duvido que tudo isto, da atitude dos outros, derive principalmente de
qualquer obscura causa intrínseca ao meu próprio temperamento. Sou
porventura de uma frieza comunicativa, que involuntariamente obriga os
outros a reflectirem o meu modo de pouco sentir.

Travo, por índole, rapidamente conhecimentos. Tardam-me pouco as simpatias
dos outros. Mas as afeições nunca chegam. Dedicações nunca as conheci.
Amarem, foi coisa que sempre me pareceu impossível, como um estranho
tratar-me por tu. Não sei se sofra com isto, se o aceite como um destino
indiferente, em que não há nem que sofrer nem que aceitar.

Desejei sempre agradar. Doeu-me sempre que fossem indiferentes. Órfão da
Fortuna, tenho, como todos os órfãos, a necessidade de ser o objecto da
afeição de alguém. Passei sempre fome da realização dessa necessidade. Tanto
me adaptei a essa fome inevitável que, por vezes, nem sei se sinto a
necessidade de comer.

Com isto ou sem isto a vida dói-me.

Os outros têm quem se lhes dedique. Eu nunca tive sequer pensasse em se me
dedicar. Servem os outros: a mim tratam-me bem.

Reconheço em mim a capacidade de provocar respeito, mas não afeição.
Infelizmente não tenho feito nada com que justifique a si próprio esse respeito
começado quem o sinta; de modo que nunca chegam a respeitar-me deveras.
Julgo às vezes que gozo sofrer. Mas na verdade eu preferia outra coisa.
Não tenho qualidades de Chefe, nem de sequaz. Nem sequer as tenho de
satisfeito, que são as que valem quando essas outras faltem. Outros,
menos inteligentes que eu, são mais fortes. Talham melhor a sua vida entre
gente, administram mais habilmente a sua inteligência. tenho todas as
qualidades para influir, menos a arte de o fazer, ou a vontade, mesmo, de o
desejar.

Se um dia amasse, não seria amado.

Basta eu querer uma coisa para ela morrer. O meu destino, porém, não tem a
força de ser mortal para qualquer coisa. Tem a fraqueza de ser mortal nas
coisas para mim.


F. Pessoa,
sob o heterônimo de Bernardo Soares, em 18 de setembro de 1917

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O que é verdade em nossos corações, é verdade. Não importa que os outros não saibam.

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